Doctorow01


Por que pratico copyfight? - Cory Doctorow (original / tradutores)

 

Por que toda essa história de reforma nos direitos autorais importa, afinal? O que está em jogo? Tudo.

 

Até muito pouco tempo atrás, direito autoral era uma regulamentação industrial. Se você utilizava um equipamento industrial extraordinário, como uma prensa, uma câmera filmadora ou uma prensa de discos de vinil, então você caía no domínio dos direitos de autor. O custo do tal equipamento era significativo, então não havia nenhuma dificuldade em acrescentar ao negócio algumas centenas de dólares pelo serviço de um bom advogado especialista. Isso representava alguns poucos pontos percentuais do custo geral do negócio.

 

Quando entidades não-industriais (pessoas, escolas, grupos religiosos,etc.) interagiam com trabalhos protegidos por direitos autorais (ou copyright), elas não feriam esses direitos. Liam livros, ouviam músicas, cantavam em volta do piano ou iam ao cinema. Discutiam sobre tudo isso. Cantavam no chuveiro. Recontavam e inventavam variações para as crianças na hora de dormir. Faziam citações e pintavam murais no quarto das crianças inspirados nesses trabalhos protegidos.

 

Aí vieram os primórdios do copyfight: o período analógico, quando surgiram videocassetes, "três em um" (sistemas com cassetes duplos), fotocopiadoras e outras tecnologias que permitiam copiar, apresentar, exibir, adaptar, ou seja, fazer coisas que entravam no domínio dos direitos autorais. Barraquinhas em convenções de fãs mostravam edições caseiras de sequências e adaptações das histórias originais de filmes e seriados. Adolescentes trocavam fitas gravadas com suas músicas preferidas, alguém gravava da TV em fita VHS e fazíamos uma festa para ver filmes.

 

Ainda, comparativamente, havia poucos prejuízos nesse processo. Embora essas atividades fossem duvidosas quanto à sua legalidade (certamente os grandes grupos detentores de conteúdo protegido consideravam essas tecnologias bombas nucleares disfarçadas, comparando o videocassete ao Bandido da Luz Vermelha e jurando que "cópias caseiras estavam matando a música"), o custo de reprimi-las era muito alto. Editoras, gravadoras e estúdios de cinema não conseguiam vigiar as festas, nem o que você fazia no trabalho ou nas convenções, a não ser que usassem um exército de espiões cujos salários custariam muito mais que qualquer perda que tivessem.

 

Entram em cena a Internet e o computador pessoal. Essas duas tecnologias representam uma "catástrofe" ao trazer o dia-a-dia das pessoas para dentro do domínio dos direitos autorais: toda residência possui um aparelho para cometer infrações (o PC) e todas as infrações acontecem num canal público (a Internet) que pode ser vigiado de forma bem barata, proporcionando repressão de custo baixo a milhares de pessoas comuns.

 

Além do mais, as transações na Internet estão mais sujeitas a infringir direitos autorais do que as equivalentes no mundo fora da rede. Isso porque toda transação na Internet envolve cópias. A Internet é um sistema eficiente de cópias entre computadores. Enquanto uma conversa na sua cozinha envolve apenas perturbações no ar por sons, a mesma conversa na Web envolve gerar milhares de cópias. Sempre que você aperta uma tecla, o comando é copiado diversas vezes no seu computador, depois no modem, numa série de routers e, mais tarde, a um servidor, que pode gerar mais centenas de cópias efêmeras ou de longa duração e, então, para a outra parte na conversação, onde outras dezenas de cópias poderão ser geradas.

 

A legislação de direito autoral entende a cópia como um evento raro e notável. Na Internet, a cópia é automática, maciça, instantânea, livre e constante. Recorte uma tirinha do Dilbert, cole-a na porta do seu escritório e você não estará violando direitos autorais. Tire uma foto da porta de seu escritório e coloque-a em seu site, para que os mesmos colegas de trabalho possam ver, e você terá violado a lei, uma vez que a legislação trata a cópia como uma atividade tão rara que impõe sanções de centenas de milhares de dólares para cada infração.

 

Há uma palavra para todas as coisas que fazemos com trabalhos criativos- todas as conversas, o recontar histórias, as canções, as dramatizações, os desenhos e as reflexões: isso se chama cultura. Cultura é algo antigo. Mais antigo que o copyright. É a existência da cultura que torna o direito autoral valioso. O fato de que temos um interminável número de canções para cantar, histórias para compartilhar, arte para ver e para acrescentar ao nosso vocabulário visual é a razão pela qual as pessoas pagam por essas coisas.

 

Permita-me dizer isso de novo: a razão para a existência de direitos autorais é o fato da cultura criar um mercado para trabalhos criativos. Se não houvesse mercado para trabalhos criativos, não haveria motivos para se preocupar com direitos autorais. Conteúdo não é tudo: cultura é. A razão para irmos ao cinema é termos sobre o que falar. Se lhe mandarem para uma ilha deserta e disserem para escolher entre suas canções preferidas e seus amigos, você seria sociopata se escolhesse a música.

 

Um imperativo da cultura é compartilhar informações: cultura é informação compartilhada. Leitores de ficção científica sabem disso: o cara à sua frente no metrô com um romance "scifi" nas mãos é parte da sua tribo. Vocês certamente leram alguns dos mesmos livros e possuem referências culturais em comum, alguma coisa para conversar. Quando você ouve uma música que gosta, a toca para as pessoas da sua tribo. Quando lê um livro que gosta, você coloca na mão de seus amigos e os estimula a ler. Quando você assiste a um ótimo espetáculo, trata de dizer para seus amigos assistirem também - ou você procura gente que já assistiu para comentá-lo.

 

Assim, a tendência natural de qualquer um que curta uma obra de arte é compartilhá-la com os outros. E já que "compartilhar" na Internet é sinônimo de "copiar", confrontamos diretamente o direito do autor. Todos copiam. Dan Glickman, ex-congressista que atualmente dirige a Motion Pictures Association dos Estados Unidos (uma das grandes defensoras do direito autoral), admitiu ter copiado o documentário This Film is not Rated (uma crítica ferrenha ao sistema MPAA de avaliação) mas se desculpou, dizendo que a cópia estava no (seu) cofre. Fingir que você não copia é o mesmo que adotar a pervertida hipocrisia dos vitorianos que juravam jamais se masturbar. Todos sabem que eles estão mentindo e muitos de nós sabemos que todos os outros mentem também.

 

O problema dos direitos autorais é que a maioria dos copiadores admite abertamente que copiam. A maioria dos usuários de Internet americanos está engajada em compartilhar arquivos. Se o compartilhamento de arquivos fosse suprimido amanhã, eles trocariam arquivos da mesma forma - e mais - ao trocar HDs, pen drives ou cartões de memória, mais informação passaria de mão em mão, embora numa velocidade menor.

 

Os copiadores sabem que cometem uma infração, mas não estão nem aí, ou acreditam que a lei não possa realmente incriminá-los pelo estão fazendo e imaginam que a legislação só puna formas mais "graves" de cópia, como a venda de DVDs piratas nas ruas. Na realidade, a lei de direitos autorais penaliza os que vendem DVDs de uma forma muito mais branda do que aqueles que compartilham os mesmos filmes na Internet. O risco de comprar um desses DVDs é muito menor do que o risco de baixá-los online (graças ao alto custo de aplicar a lei nessas transações na vida real).

 

De fato, os copiadores estão ocupadíssimos construindo uma ética elaborada do que pode e não pode ser compartilhado, com quem e em quais circunstâncias. Eles se encontram em círculos privados de compartilhamento, discutem normas entre si e, tanto na teoria como na prática, criam uma pletora de direitos paralelos ["para-copyrights"] que refletem um entendimento cultural de suas ações.

 

A tragédia é que esses direitos paralelos não têm quase nada a ver com a atual lei de copyright. Mesmo que você se esforce para segui-los à risca, você estará provavelmente infringindo a legislação. Logo, se você estiver produzindo vídeos de música "anime" (vídeos para música pop feitos de forma inteligente, encaixando e juntando clipes de filmes "anime" - procure no Google por "amv" para ter exemplos), você pode seguir todas as normas de seu grupo -- não mostrá-los a estranhos e somente usar certas fontes para música e vídeo – e, no entanto, você ainda estará cometendo milhões de dólares de infração cada que se sentar à frente do teclado.

 

Não é surpresa que os direitos paralelos e os direitos autorais não tenham muito a agregar um para o outro. No final, o copyright regula o que as grandes empresas fazem. E direitos paralelos regulam aquilo que os indivíduos fazem num contexto cultural. Por que se surpreender com a falta de conexão entre essas regras?

 

É bem possível que se alcance uma trégua entre copiadores e detentores de direitos autorais: uma legislação que apenas considere "cultura" e não "indústria". Porém, o único jeito trazer os copiadores para a mesa de discussão é parar de insistir que toda cópia não-autorizada é um erro, roubo e crime. Pessoas que sabem o quanto copiar é simples, bom e vantajoso escutam esse tipo de coisa e acham que ou isso não faz nenhum sentido ou não tem mesmo nada ver com elas.

 

Porque se o ato de copiar na Internet acabasse amanhã, isso seria também o fim da cultura na Internet. O YouTube desapareceria sem seu "estoque" de vídeos não-autorizados, o LiveJournal morreria sem os avatares e as fascinantes "pastebombs" de livros, notícias e blogs, e o Flickr definharia sem todas as fotos com marca d'água e créditos de trabalhos, objetos e situações protegidos por direitos autorais.

 

Todas essas discussões acontecem quando queremos e gostamos de determinadas coisas. Fanfic é escrito por pessoas que amam livros. Os vídeos do YouTube são feitos por pessoas que querem que você veja e fale sobre elas. Os avatares do LiveJournal demonstram afinidades. Se a cultura perder a guerra contra os direitos autorais,  a razão pela qual os direitos autorais existem morre com ela.

 

Nota (por Pena Schmidt)

* O copyright é nativo na legislação americana, mas é haoli no Brasil. Aqui temos o direito do autor, que dá ao autor o direito moral, inalienável e transmissível aos herdeiros, de ter o controle de sua obra. Nada pode ser feito sem seu consentimento. Esta é uma clausula pétrea da Constituição Brasileira, não é simples de alterar, mas a discussão é válida e importante. Nos Estados Unidos o direito autoral é negociado e o copyright passa a pertencer, na maioria das vezes, a uma empresa (publisher).

 

O mesmo acontece no Brasil, mas com o agravante que não é possível ignorar o autor na transação, o que criou um mercado digital estagnado no qual as autorizações são demoradas e dificultam a circulação e comercialização de obras. O foco, no artigo, é para a cópia doméstica e também temos esse problema. Precisamos lutar pelo nosso Direito de Copiar, sem prejudicar o Direito do Autor.